De 10 galpões, foram construídos apenas dois. Previsão era que polo gerasse emprego para 500 catadores. Quando Aterro Sanitário de Gramacho fechou as portas há 10 anos, 1.707 pessoas viviam com o que catavam no local.
Esta é a segunda reportagem da série especial do g1.
Por Janaína Carvalho e Marcos Serra Lima, g1 Rio - 31/05/2022 03h00 Atualizado há 2 dias - Foto: Marcos Serra Lima/g1
No dia 3 de junho de 2012, quando o Aterro Sanitário de Jardim Gramacho recebeu o último caminhão de lixo, representantes dos governos municipais (Rio e Caxias), estadual e federal se comprometeram a levar desenvolvimento econômico e social para a região.
Uma década depois, a maioria das promessas nem sequer saiu do papel. A população de ex-catadores vive em situação precária, comunidades do entorno do aterro continuam sem saneamento básico nem água encanada, e o polo de reciclagem, que seria o primeiro do Brasil, tem apenas 2 galpões construídos, dos 10 previstos no projeto inicial.
Esta é a segunda reportagem da série 'Década jogada no lixo', na qual o g1 conta como está Jardim Gramacho depois que as montanhas de lixo desapareceram.
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De acordo com o projeto da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, em parceria com a Petrobras e o Pangea (Centro de Estudos Socioambientais), Gramacho receberia o primeiro polo de reciclagem do Brasil com oito espaços com maquinário, duas unidades de processamento de resíduos, um centro administrativo para cursos de qualificação profissional e uma creche para atender as crianças.
No entanto, em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a secretaria e a Petrobras em julho de 2012, um mês após o fechamento do aterro, apenas a primeira etapa do projeto foi assegurada — a construção de dois galpões. As etapas seguintes nunca saíram do papel.
O objetivo era que o polo gerasse emprego para cerca de 500 catadores, dos 1.707 que trabalhavam no aterro até o dia do seu fechamento. Hoje, nas três cooperativas que ocupam os dois galpões construídos, trabalham apenas 38 catadores, menos de 8% que o projeto deveria atender.
“O polo de reciclagem, que seria o mecanismo de absorver a mão de obra dos catadores que ficaram desempregados após o fechamento, nunca saiu do papel. O pouco trabalho que é feito aqui é feito independente de cooperativa. A gente não tem apoio do estado, a gente não tem apoio do Município de Duque de Caxias, a gente não tem apoio do Município do Rio de Janeiro, que foi o grande responsável, o maior depositador de resíduo aqui na região”, explica diz Tião Santos, presidente da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (Acamjg).
Sebastião dos Santos, de 43 anos, mais conhecido como Tião, ficou conhecido mundialmente após fazer parte do documentário “Lixo Extraordinário”, que mostrou a rotina dos catadores de lixo de Gramacho antes do seu fechamento e concorreu ao Oscar em 2011.
Atualmente, esses dois galpões ainda funcionam de forma precária e sem maquinário suficiente. Além disso, por falta de políticas públicas que incentivam a reciclagem, há dias em que os espaços nem sequer abrem as portas em função da falta de material.
“Na inauguração do polo, a gente recebia de cerca de oito empresas grandes geradores. Hoje a gente recebe somente da Reduc. É muito comum essa situação de ter galpão fechado durante a semana. Às vezes, funciona dez dias no mês, oito dias, depende muito da produção”, explica Glória Cristina dos Santos.
Glória destaca que o polo chegou a ter 90 catadores, mas, em função da redução no abastecimento de matéria-prima do polo, muitos voltaram para as ruas.
Inea e Petrobras
Em nota, o Inea informou que após o TAC a Petrobras se comprometeu a investir em ações ambientais e em melhorias da área operacional da Refinaria de Duque de Caxias (Reduc).
"Dentre as ações previstas estavam investimentos para a construção de dois galpões e aquisição de equipamentos para sua operacionalização. Os galpões foram devidamente construídos e entregues, em 2013, para organizações de catadores de materiais recicláveis", diz o instituto.
"Atualmente, a secretaria finaliza os ajustes necessários a um convênio que será firmado entre a pasta ambiental e o Instituto Estadual de Engenharia e Arquitetura do Rio de Janeiro (IEAA/RJ), por meio da qual, o IEAA/RJ irá apoiar as ações de melhoria no Polo de Reciclagem", acrescenta a nota
A Petrobras diz que apoiou a implantação do polo de Reciclagem dos Catadores de Jardim Gramacho. Todo o escopo sob a responsabilidade da empresa foi implantado (projeto arquitetônico, implantação de dois galpões, aquisição de máquinas, equipamentos de proteção individual, etc).
Rio enterra R$ 1 bi em recicláveis
Segundo dados da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro), o estado enterra anualmente R$ 1 bilhão em materiais que poderiam seguir o caminho da reciclagem e gerar recursos.
Estima-se que 319 mil toneladas de resíduos recicláveis foram perdidas em 2019, somando o volume que não foi coletado com o que foi depositado em local inadequado. Isso representa oito vezes mais do que o total que é recolhido pela coleta seletiva de todos os municípios no território fluminense.
“A gente não fez nada de novo. O que a gente mudou foi um aterro sanitário nas normas ambientais, que também não são tão ambientais assim, mas o modo de tratar o resíduo no Rio de Janeiro não mudou, assim como no Brasil, mesmo após a Política Nacional de Resíduos Sólidos. O Brasil acha que faz gestão de resíduos. Mas a gente não faz gestão de resíduos. A gente paga para varrer, a gente paga para coletar, a gente paga para transportar e paga para enterrar”, diz Tião.
O desperdício fica mais evidente quando o estudo da Firjan mostra que enquanto 60 mil toneladas de metal são recicladas, mais de 80 mil potencialmente recicláveis são aterradas. Já com relação ao papelão, apenas 50 mil toneladas são recicladas, contra 740 mil toneladas aterradas.
A cidade do Rio de Janeiro gera hoje cerca de 9 mil toneladas de lixo por dia – ou 270 mil toneladas por mês. A coleta seletiva, no entanto, recolhe apenas 3,9 mil toneladas mensais.
Segundo a Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana), o sistema de coleta seletiva recolhe 9% dos 36,7% de materiais potencialmente recicláveis do resíduo domiciliar. Atualmente, o serviço de coleta seletiva da empresa atende 122 bairros e 38 outros bairros não possuem coleta seletiva.
Coleta seletiva
A reciclagem é um trabalho essencial para a sociedade e para o meio ambiente, mas, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), no Rio de Janeiro e no Brasil ainda não é exercida da forma correta.
Doze anos após entrar em vigor a Política Nacional de Resíduos Sólidos, cerca de 25,4% dos municípios brasileiros não possuem nenhum tipo de iniciativa de coleta seletiva, segundo a Abrelpe.
O levantamento ainda mostra que, durante a pandemia de Covid-19, a geração de resíduos sólidos urbanos nos domicílios brasileiros cresceu cerca de 4%. Mesmo com esse crescimento, a cobertura do serviço não foi ampliada. Foram coletados 76,1 milhões de toneladas/ano (cobertura de 92,2%), o que significa que 6,4 milhões de toneladas/ano de resíduos nem sequer foram recolhidos.
“A reciclagem é um trabalho muito digno. Mas como é a forma de exercer essa atividade de reciclagem no Brasil? Aí sim, ela é desumana, ela é indigna. Onde estão os catadores? Na sua grande maioria, 60% dos catadores estão dentro dos lixões a céu aberto no Brasil. Então, 60% dos catadores de lixo hoje sofrem todo tipo de miséria, mazela que as pessoas já conhecem. Outros 35% dos catadores estão nos grandes centros urbanos, puxando o carrinho, sofrendo todo tipo de discriminação e desvalorização”, garante Tião.
Soluções sustentáveis
Para evitar o desperdício, o engenheiro civil sanitarista e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Adacto Ottoni ressalta que a melhor solução seria transformar a área do aterro em um parque de aproveitamento de resíduos.
“Nesse parque você iria implementar o aproveitamento da construção civil e dos restos de comida, construindo uma usina de compostagem e outra para pegar o material seco do lixo, que é totalmente reciclável, e resíduos da construção civil. E isso, utilizando os catadores que hoje em dia estão desempregados”, afirma Adacto.
Dessa forma, seria possível baratear o descarte, gerar renda e ainda aumentar a vida útil do Centro de Tratamento de Resíduos de Seropédica, que passou a receber cerca de 10 mil toneladas de resíduos por dia após o fechamento do Aterro de Gramacho.
“Você vai reaproveitar todo esse material, estimulando a reciclagem de resíduos recicláveis para o empresário investir e vai gerar muito emprego, deixando de descartar no meio ambiente. Então você vê que a solução não é complexa, é simples assim. O que falta é vontade política de fazer a coisa certa”, garante o especialista.
Sobre o abandono da comunidade de catadores de Gramacho, o professor enfatiza que apenas quando houver mudança nas políticas públicas dessa população vai melhorar.
“Esses catadores que trabalhavam no aterro de Gramacho ficaram praticamente abandonados. Então, o primeiro aspecto que é fundamental é se ter vontade política de se corrigir esse grande passivo socioambiental no entorno de Gramacho”, explica.